A Possibilidade de Recuperação Judicial Para Entidades de Fins Não Econômicos

A Possibilidade de Recuperação Judicial Para Entidades de Fins Não Econômicos

Por Letícia Gatto

 

Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, através de uma decisão inédita, deferiu o pedido de recuperação judicial apresentado pelo Instituto Cândido Mendes, uma associação civil de fins não econômicos, reforçando o entendimento de que “a finalidade maior da Lei de Recuperação Judicial é a de preservar a pessoa jurídica, qualquer que seja a sua natureza, como fonte produtora de riquezas, o emprego dos trabalhadores, o interesse dos credores, sua função social e o estímulo da atividade econômica”[1].

Tal decisão dividiu opiniões e reabriu a discussão sobre quais entidades efetivamente poderiam gozar dos benefícios do procedimento de recuperação judicial de empresas. Esta discussão se estende desde o advento da Lei de Falência e Recuperação Judicial (Lei 11.101/2005), posto que a análise do texto da lei, o seu artigo 1º, deixa certo que o instituto seria aplicado apenas a empresários e sociedades empresárias, não contemplando as fundações, cooperativas, associações de fins não econômicos, independentemente das atividades exercidas.

Art. 1º Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante referidos simplesmente como devedor (grifo nosso).

            Cabe esclarecer que associações e sociedades empresárias são tipos distintos de pessoa jurídica diferindo-se entre si em vários pontos, tendo como principal o fato de as associações não possuírem fins econômicos[2], como as empresas, sujeitando-se a leis diversas para dirimir várias questões. No entanto, muitas dessas instituições acabam exercendo atividades equiparadas às econômicas, com organização semelhante às empresas, organizando fatores de produção e colocando bens e serviços no mercado.

É o que acontece com muitos hospitais beneficentes, entidades de ensino e entidades desportivas, que muitas vezes possuem uma estrutura empresária do ponto de vista econômico, ainda que não visem a obtenção de lucro e estejam legalmente vedadas de distribuir eventuais lucros entre seus associados.

Conforme disposto no art. 966 do Código Civil brasileiro, empresário é quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

 

Nesse sentido, para que uma “empresa” seja assim considerada, é necessário que estejam presentes três elementos: (I) exercício de atividade econômica para a produção ou circulação de bens ou serviços; (II) atividade organizada, com a coordenação dos fatores de produção (capital, trabalho e bens); e (III) atividade realizada de modo profissional, isto é, com habitualidade e visando ao lucro ou retorno financeiro.

De acordo com o entendimento referendado pelo Conselho da Justiça Federal, através do Enunciado Administrativo nº 534 do CJF/STJ, da VI Jornada de Direito Civil (2013), tem-se que: “As associações podem desenvolver atividade econômica, desde que não haja finalidade lucrativa (grifo nosso)”.[3]

Em decorrência do entendimento supracitado, as entidades associativas de fins não econômicos podem obter superávit em determinados exercícios financeiros, não podendo, entretanto, como já mencionado, distribuir os lucros entre seus associados ou diretores. Sobre os requisitos para fruição da imunidade tributária de instituições de fins não econômicos de assistência social ou educacionais, a Lei 9.532/97 prevê que: “Considera-se entidade sem fins lucrativos a que não apresente superávit em suas contas ou, caso o apresente em determinado exercício, destine referido resultado, integralmente, à manutenção e ao desenvolvimento dos seus objetivos sociais”.

Assim, como no caso do Instituto Cândido Mendes, é possível que as entidades desempenhem suas atividades de fins econômicos, gerem superávit financeiro e crescimento de patrimônio, mesmo que estejam impedidas de distribuir lucros.

Destarte, embora haja doutrina em sentido diverso, parte dos doutrinadores[4] entende que seria possível fazer uma leitura do artigo 1º da Lei de Recuperação de Empresas, para estender a aplicação do referido diploma legal para cooperativas e associações que exerçam atividades de produção ou circulação de bens ou serviços, com notória geração de riquezas (economicidade). Essa leitura menos literal, encontraria reforço no art. 47 da Lei de Recuperação de Empresas, no qual resta estabelecido que o objetivo da recuperação judicial seria “viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica”.

Por fim, grande parte dos cientistas jurídicos apontam a insegurança jurídica de se aplicar institutos como da falência e da recuperação judicial com base na interpretação extensiva do art. 1º da Lei de Recuperação de empresas. Para evitar os riscos provenientes da insegurança jurídica na aplicação de instituto jurídico de extrema relevância como a Recuperação Judicial, é recomendada a criação de regras claras que possam ser aplicadas de maneira coesa pelo Poder Judiciário, garantindo assim a previsibilidade do procedimento de recuperação e a segurança da devedora e de todos os credores.

[1] Processo nº 0031515-53.2020.8.19.0000

[2] Fins lucrativos x Fins Econômicos: é importante destacar que de acordo com algumas doutrinas a finalidade não econômica não é um elemento restritivo para a venda de produtos ou fornecimento de serviços pelas entidades, desde que o valor recebido seja destinado à realização das atividades fins da entidade.

[3] Disponível em: https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/145

[4] Citamos: (I) VERÇOSA, Haroldo Malheiros Duclerc. Das pessoas sujeitas e não sujeitas aos regimes de recuperação de empresas e ao da falência. In: PAIVA, Luiz Fernando Valente de (coord.). Direito falimentar e a nova lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 109-110 (defendendo a possibilidade de falência e recuperação judicial de cooperativas); (II) WAISBERG, Ivo e RIBEIRO, José Horácio Halfeld Rezende. A ultrapassada teoria da empresa e o direito das empresas em dificuldades. In: Temas de direito da insolvência: Estudos em homenagem ao Professor Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo: Instituto dos Advogados de São Paulo, 2017, p. 708 (defendendo a necessidade de uma leitura ampliativa do art. 1º da Lei de Recuperação de Empresas); e (III) BEZERRA FILHO, Manoel Justino e CAMPINHO, Sérgio (em pareceres defendendo a aplicação da Lei de Recuperação Judicial ao Instituto Cândido Mendes).